DOSSIÊ DE HISTÓRIA – TEXTO 03 – (26abril2016) – 1º SEMESTRE 2016.
Era março
de 2015, e os protestos se davam no rastro da crise econômica, da
desarticulação política das bases de sustentação do segundo mandato da
presidente Dilma Rousseff e da corrosão de sua credibilidade. Mas a caixa de
Pandora da vida política nacional havia sido destampada dois anos antes, nas
manifestações de 2013, que liberaram das conhecidas amarras cordiais os males
do autoritarismo, do ódio, da intolerância, do preconceito e do desapreço à
democracia.
Haveria
na obra de Paulo Freire alguma mensagem capaz de autorizar tamanha indignação e
reprovação?
“Doutrinador”
é aquele que prega, instrui, incute em alguém uma crença, um ponto de vista ou
um princípio sectário, ou seja, realiza uma transferência de conteúdos, de si
para o objeto de sua doutrinação. Nada está mais distante do pensamento
pedagógico de Paulo Freire do que isto. Ele repele com contundência qualquer
procedimento doutrinador: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, escreveu em Pedagogia
da autonomia.
Suas
recomendações sobre os saberes necessários à prática educativa são claras.
Desde logo, e sempre, a prática: “A educação como prática da liberdade, ao contrário
daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato,
isolado, solto, desligado do mundo, assim como também na negação do mundo como
uma realidade ausente de homens”, ensinou em Pedagogia do oprimido. O homem em
suas relações com o mundo. Este é o pressuposto de toda compreensão e de toda
ação educativa capaz de promover a autonomia e a libertação das pessoas. Não é
que o mundo seja necessariamente uma prisão. Ele até pode ser, e muitas vezes
é. O que importa aqui é pôr o homem em seu contexto, rompendo o aparente curso
natural das coisas e identificando o conjunto de suas relações. Colocadas em
perspectiva, elas se reconfiguram e geram conhecimento histórico sobre si e
sobre o mundo, para si e para o mundo.
Promover
a tomada de consciência e a transformação do indivíduo em sujeito qualificado
de sua própria história: eis a prática (práxis) educativa de Paulo Freire. Ele
assim o diz, sobre si mesmo, em Educação como prática da liberdade: “Todo o
empenho do Autor se fixou na busca desse homem-sujeito que, necessariamente,
implicaria em uma sociedade também sujeito. Sempre lhe pareceu, dentro das
condições históricas de sua sociedade, inadiável e indispensável uma ampla
conscientização das massas brasileiras, através de uma educação que as
colocasse numa postura de autorreflexão e de reflexão sobre o seu tempo e
espaço. (...) Autorreflexão que as levará ao aprofundamento consequente de sua
tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais
como espectadoras, mas como figurantes e autoras”.
Onde
encontrar o ímpeto doutrinador em alguém que, em vez de pregar e impor,
pergunta e escuta para compreender? Quando Paulo Freire retornou ao Brasil, em
agosto de 1979, uma avalanche de repórteres cercou-o para saber sua opinião
sobre a situação do país na época. Ele respondeu: “Vim para reaprender o Brasil
e, enquanto estiver no processo de reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil,
não tenho muito a dizer. Tenho mais o que perguntar”. Sua atitude, antes de ser
dogmática e taxativa, demonstra uma abertura irrestrita para o mundo, como
aprendiz.
A chave
para compreendermos a acusação de “doutrinador marxista” contra Paulo Freire
não está em sua obra. Encontra-se na mentalidade daqueles que produziram a
mensagem, em sua compreensão estreita do que é educação e do que é ensinar.
Essas pessoas acreditam piamente no mito da neutralidade da ação docente,
segundo o qual o professor não tem cara, não tem lado, não toma partido, não
pensa nem intervém de modo transformador na realidade social. Para elas, o
professor deve estar unicamente comprometido com a sagrada missão de transmitir
conteúdos anonimamente escolhidos, aparentemente desinteressados e oficialmente
listados. Conteúdos supostamente eficazes, pragmáticos e destinados a aplacar a
sanha competitiva por boas posições escolares e universitárias que tenham o
condão de assegurar condições ideais de disputa nas escassas oportunidades de
uma sociedade excludente. Na verdade, o acusador grita contra o espelho. É ele,
e não Paulo Freire, quem prega a doutrinação. Qual? Diríamos, sem medo de
errar: a “doutrinação bancária”, aquela que transfere “ao outro, tomado como
paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos
conceitos”.
O caminho
da autonomia e da liberdade aberto por Freire não foi concebido para o educando
como doação de uma inteligência superior que se compraz na realização daquilo
que considera ser o bem, ou seja, como alguém (sujeito) que sabe o que é melhor
para o outro (objeto). A grandeza do pensamento de Freire está na redução da
distância em relação ao educando, na disponibilidade para escutá-lo em suas
diferenças, na abertura de dialógica para a transformação recíproca: são dois
sujeitos em troca aberta, franca e transformadora. Enfim, o caminho é
partilhado com o educando: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. (...) A
autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”.
A
mentalidade conservadora dos acusadores rechaça a dimensão política da
pedagogia concebida e posta em prática por Paulo Freire. “Ensinar exige
reconhecer que a educação é ideológica”, esclarece o educador. É por conta
disso, provavelmente, que a mensagem no protesto decide ir além de uma
doutrinação qualquer, e a qualifica: Freire estaria ligado a uma “doutrinação
marxista”. Talvez sem saber, o acusador reedita uma crítica conservadora muito
antiga contra Paulo Freire, baseada no fato de que seu trabalho é tão
pedagógico como político. Mas é isso mesmo. Como afirmou Moacir Gadotti, o educador
é político enquanto educador e o político é educador pelo próprio fato de ser
político. Freire complementa: “seria uma ingenuidade reduzir todo o político ao
pedagógico, assim como seria ingênuo fazer o contrário. (...) quando se
descobre uma certa e possível especificidade do político, percebe-se também que
essa especificidade não foi suficiente para proibir a presença do pedagógico
nela. Quando se descobre por sua vez a especificidade do pedagógico, nota-se
que não lhe é possível proibir a entrada do político”.
Quanto à
alcunha de “marxista”, pretensamente desqualificadora, é preciso dizer que
Paulo Freire jamais deixou de destacar o papel emancipatório atribuído por Karl
Marx à ciência e à pesquisa. Além disso, juntamente com outros intelectuais marxistas,
como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, o educador não só foi crítico de
posições dogmáticas e mecanicistas, como reconheceu o valor universal da
democracia e lutou intensamente para o seu desenvolvimento no Brasil. Sobre os
confrontos em torno do seu legado, o próprio Marx certa vez disse: “O diabo os
leve! O que sei é que eu não sou marxista”.
A
pedagogia de Paulo Freire é radical, isto é, vem da e vai à raiz das coisas.
Privilegia a cultura, os saberes e os valores dos educandos como ponto de
partida e chegada de uma educação como prática da liberdade e da transformação.
Quando lecionou a primeira aula em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte,
em 1963, Freire falou sobre o universo que cercava os estudantes: a leitura do
mundo precede a leitura da palavra. No quadro negro, não escreveu “Ivo viu a
uva”. Escreveu coisas oriundas daquele cotidiano popular, como “tijolo”. De
imediato, o educando reconheceu-se naquela palavra e naquele contexto. Nada
mais lhe era alheio: ele havia se tornado sujeito da aula.
Esse
encontro cultural acolheu e inseriu o educando, abrindo o caminho para a sua
transformação. Por isso mesmo, é um ato político em seu sentido histórico: a
discussão da polis em que vivemos e na qual queremos viver. Este talvez seja um
dos pontos centrais da famosa citação do educador, replicada nas redes sociais
como resposta dada pela Unesco ao cartaz levantado contra Paulo Freire:
“Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o
mundo”.
Paulo Cavalcante é professor da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Ensino de
História em Rede Nacional – ProfHistória.
Yllan de
Mattos é
professor da Universidade Estadual Paulista e autor de A Inquisição Contestada
(Mauad-X/Faperj, 2014).
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Respeito é palavra prática.