DOSSIÊ DE HISTÓRIA – TEXTO 02 –30AGOSTO2016 – 2º SEMESTRE 2016.
SEGUNDO ANO
Era março de 2015, e os protestos se davam no
rastro da crise econômica, da desarticulação política das bases de sustentação
do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e da corrosão de sua
credibilidade. Mas a caixa de Pandora da vida política nacional havia sido
destampada dois anos antes, nas manifestações de 2013, que liberaram das
conhecidas amarras cordiais os males do autoritarismo, do ódio, da
intolerância, do preconceito e do desapreço à democracia.
Haveria na obra de Paulo Freire alguma mensagem
capaz de autorizar tamanha indignação e reprovação?
“Doutrinador” é aquele que prega, instrui, incute
em alguém uma crença, um ponto de vista ou um princípio sectário, ou seja, realiza
uma transferência de conteúdos, de si para o objeto de sua doutrinação. Nada
está mais distante do pensamento pedagógico de Paulo Freire do que isto. Ele
repele com contundência qualquer procedimento doutrinador: “Ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a
sua construção”, escreveu em Pedagogia da autonomia.
Suas recomendações sobre os saberes necessários à
prática educativa são claras. Desde logo, e sempre, a prática: “A educação como
prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica
na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como
também na negação do mundo como uma realidade ausente de homens”, ensinou em
Pedagogia do oprimido. O homem em suas relações com o mundo. Este é o
pressuposto de toda compreensão e de toda ação educativa capaz de promover a
autonomia e a libertação das pessoas. Não é que o mundo seja necessariamente
uma prisão. Ele até pode ser, e muitas vezes é. O que importa aqui é pôr o
homem em seu contexto, rompendo o aparente curso natural das coisas e
identificando o conjunto de suas relações. Colocadas em perspectiva, elas se
reconfiguram e geram conhecimento histórico sobre si e sobre o mundo, para si e
para o mundo.
Promover a tomada de consciência e a transformação
do indivíduo em sujeito qualificado de sua própria história: eis a prática
(práxis) educativa de Paulo Freire. Ele assim o diz, sobre si mesmo, em
Educação como prática da liberdade: “Todo o empenho do Autor se fixou na busca
desse homem-sujeito que, necessariamente, implicaria em uma sociedade também
sujeito. Sempre lhe pareceu, dentro das condições históricas de sua sociedade,
inadiável e indispensável uma ampla conscientização das massas brasileiras,
através de uma educação que as colocasse numa postura de autorreflexão e de
reflexão sobre o seu tempo e espaço. (...) Autorreflexão que as levará ao
aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua
inserção na História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e
autoras”.
Onde encontrar o ímpeto doutrinador em alguém que,
em vez de pregar e impor, pergunta e escuta para compreender? Quando Paulo
Freire retornou ao Brasil, em agosto de 1979, uma avalanche de repórteres
cercou-o para saber sua opinião sobre a situação do país na época. Ele
respondeu: “Vim para reaprender o Brasil e, enquanto estiver no processo de
reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil, não tenho muito a dizer. Tenho
mais o que perguntar”. Sua atitude, antes de ser dogmática e taxativa,
demonstra uma abertura irrestrita para o mundo, como aprendiz.
A chave para compreendermos a acusação de
“doutrinador marxista” contra Paulo Freire não está em sua obra. Encontra-se na
mentalidade daqueles que produziram a mensagem, em sua compreensão estreita do
que é educação e do que é ensinar. Essas pessoas acreditam piamente no mito da
neutralidade da ação docente, segundo o qual o professor não tem cara, não tem
lado, não toma partido, não pensa nem intervém de modo transformador na
realidade social. Para elas, o professor deve estar unicamente comprometido com
a sagrada missão de transmitir conteúdos anonimamente escolhidos, aparentemente
desinteressados e oficialmente listados. Conteúdos supostamente eficazes,
pragmáticos e destinados a aplacar a sanha competitiva por boas posições
escolares e universitárias que tenham o condão de assegurar condições ideais de
disputa nas escassas oportunidades de uma sociedade excludente. Na verdade, o
acusador grita contra o espelho. É ele, e não Paulo Freire, quem prega a
doutrinação. Qual? Diríamos, sem medo de errar: a “doutrinação bancária”,
aquela que transfere “ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a
inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos”.
O caminho da autonomia e da liberdade aberto por
Freire não foi concebido para o educando como doação de uma inteligência
superior que se compraz na realização daquilo que considera ser o bem, ou seja,
como alguém (sujeito) que sabe o que é melhor para o outro (objeto). A grandeza
do pensamento de Freire está na redução da distância em relação ao educando, na
disponibilidade para escutá-lo em suas diferenças, na abertura de dialógica
para a transformação recíproca: são dois sujeitos em troca aberta, franca e
transformadora. Enfim, o caminho é partilhado com o educando: “Ninguém é
sujeito da autonomia de ninguém. (...) A autonomia, enquanto amadurecimento do
ser para si, é processo, é vir a ser”.
A mentalidade conservadora dos acusadores rechaça a
dimensão política da pedagogia concebida e posta em prática por Paulo Freire.
“Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”, esclarece o educador. É
por conta disso, provavelmente, que a mensagem no protesto decide ir além de
uma doutrinação qualquer, e a qualifica: Freire estaria ligado a uma
“doutrinação marxista”. Talvez sem saber, o acusador reedita uma crítica
conservadora muito antiga contra Paulo Freire, baseada no fato de que seu
trabalho é tão pedagógico como político. Mas é isso mesmo. Como afirmou Moacir
Gadotti, o educador é político enquanto educador e o político é educador pelo
próprio fato de ser político. Freire complementa: “seria uma ingenuidade
reduzir todo o político ao pedagógico, assim como seria ingênuo fazer o
contrário. (...) quando se descobre uma certa e possível especificidade do
político, percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para
proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua vez a
especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível proibir a entrada
do político”.
Quanto à alcunha de “marxista”, pretensamente
desqualificadora, é preciso dizer que Paulo Freire jamais deixou de destacar o
papel emancipatório atribuído por Karl Marx à ciência e à pesquisa. Além disso,
juntamente com outros intelectuais marxistas, como Leandro Konder e Carlos
Nelson Coutinho, o educador não só foi crítico de posições dogmáticas e
mecanicistas, como reconheceu o valor universal da democracia e lutou
intensamente para o seu desenvolvimento no Brasil. Sobre os confrontos em torno
do seu legado, o próprio Marx certa vez disse: “O diabo os leve! O que sei é
que eu não sou marxista”.
A pedagogia de Paulo Freire é radical, isto é, vem
da e vai à raiz das coisas. Privilegia a cultura, os saberes e os valores dos
educandos como ponto de partida e chegada de uma educação como prática da
liberdade e da transformação. Quando lecionou a primeira aula em Angicos, no
interior do Rio Grande do Norte, em 1963, Freire falou sobre o universo que
cercava os estudantes: a leitura do mundo precede a leitura da palavra. No
quadro negro, não escreveu “Ivo viu a uva”. Escreveu coisas oriundas daquele
cotidiano popular, como “tijolo”. De imediato, o educando reconheceu-se naquela
palavra e naquele contexto. Nada mais lhe era alheio: ele havia se tornado
sujeito da aula.
Esse encontro cultural acolheu e inseriu o
educando, abrindo o caminho para a sua transformação. Por isso mesmo, é um ato
político em seu sentido histórico: a discussão da polis em que vivemos e na
qual queremos viver. Este talvez seja um dos pontos centrais da famosa citação
do educador, replicada nas redes sociais como resposta dada pela Unesco ao
cartaz levantado contra Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo.
Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.
Paulo
Cavalcante é
professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado
Profissional em Ensino de História em Rede Nacional – ProfHistória.
Yllan de
Mattos é
professor da Universidade Estadual Paulista e autor de A Inquisição Contestada
(Mauad-X/Faperj, 2014).
Com base no texto, responda as questões
abaixo:
1.
Faça
uma biografia de Paulo Freire.
2.
Para
Paulo Freire, o que é “ensinar”?
3.
Para
Paulo Freire, o que é Educação?
4.
Qual
a “práxis” educativa de Paulo Freire?
5.
Segundo
o texto, onde está a chave para compreendermos a acusação de “doutrinador
marxista” contra Paulo Freire?
6.
Explique
o “mito da neutralidade” da ação docente.
7.
Faça
uma biografia de Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e Moacir Gadotti.
8.
Indique
cinco (05) títulos de livros de Paulo Freire.
9.
Explique
a expressão “doutrinação bancária”, citada no texto.
10. Segundo o texto,
como é a pedagogia de Paulo Freire?
11. Dê o significado
e/ou conceito das palavras abaixo:
·
Docente
·
Educador
·
Marxismo
·
Contundência
·
Pressuposto
·
Inserção
·
Condão
·
Recíproco
·
Partilhar
·
Rechaçar
·
Emancipatório
·
Preceder.
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Respeito é palavra prática.