CRIME
SEM VÍTIMA?
Gláucia Farsarella
Foley – Juíza de Direito e membro da Associação dos juízes para a Democracia –
Correio Braziliense 07 de março de 2016 – Caderno Opinião.
A criminalização do consumo pessoal
de drogas é inconstitucional porque, ao punir conduta de natureza estritamente individual
e inofensiva a terceiros, o art. 28 da Lei 11.343/2006 afronta os princípios da
inviolabilidade da intimidade e da vida privada, da lesividade e da garantia à liberdade
individual consagrados na Constituição Federal. A adequada interpretação do
art. 28 – adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo
para consumo pessoal, drogas sem autorização legal ou regulamentar – demanda a compreensão
de qual o bem jurídico que a norma pretende proteger.
Nesse sentido, a prática de
quaisquer das condutas ali previstas será adequada à norma penal se, e somente
se, a motivação do agente for o consumo próprio da substância entorpecente. Caso
a conduta tenha qualquer traço de alteridade, sugerindo que a ação do sujeito transcendeu
a esfera pessoal e envolveu terceiros, o agente responderá por crime mais
grave. E, nessa hipótese caberá ao Ministério Público o oferecimento da
denúncia por tráfico de drogas e não por uso próprio.
Muito embora a lei 11.343 anuncie
que seu objetivo é a proteção da saúde pública, o bem jurídico tutelado pelo art.
28 é exclusivamente a saúde individual do usuário. É o que diz literalmente a
norma. A justificativa ideologicamente construída para a criminalização da conduta
é a de que o consumo pessoal de entorpecentes enseja expansibilidades de perigo
abstrato à saúde pública. A partir dessa premissa de lógica duvidosa,
consolidou-se uma infundada ilação da existência de nexo de causalidade entre
um comportamento que se limita á esfera da subjetividade e a ofensa ao interesse
público.
Em outras palavras, se o tipo penal
em análise só existe se a ação for voltada para o consumo pessoal, o âmbito da
lesão é estritamente individual, não podendo a sua interpretação ser alargada
em detrimento das garantias individuais. A alegada má influência exercida por
um usuário a seus pares deve se limitar aos debates no âmbito da saúde pública,
jamais podendo servir de fundamentação para a intervenção penal, que não opere
com meras suposições.
Criminalizar a conduta no presente
com vistas exclusivamente a prevenir danos incertos, eventuais e futuros, não é
compatível como direito penal. Sob a ótica de uma política criminal bastante restrita,
cunhou-se a máxima de que a penalização do consumo individual é essencial para
o combate ao tráfico de drogas. A mera opinião (a doxa platônica), sem qualquer
lastro em estudos multidisciplinares sobre o fenômeno do uso de drogas pela humanidade,
transformou-se em verdade científica e o proibicionismo passou a ser
hegemônico.
A adoção de tal premissa, contudo, traz
graves consequências para o direito penal, na medida em que implica admitir a responsabilidade
de natureza objetiva, além de reproduzir a lógica – felizmente estranha ao
nosso ordenamento jurídico – de punir a vítima (o usuário) para alcançar o
criminoso (o traficante). É evidente a violação aos direitos fundamentais da
pessoa – autonomia e liberdade – quando há intervenção estatal nas chamadas zonas livres do direito penal (Arthur
Kaufmann). Não pode haver relevância penal nesse sagrado espaço da subjetividade
e da liberdade.
A política criminal não deve ser
manejada como instrumento de educação moral, tampouco servir de ferramenta para
ditar, fiscalizar e punir condutas consideradas avessas aos costumes temporariamente
hegemônicos. O direito penal só deve ser acionado quando o resultado dessa ofensa
afeta negativamente o interesse de terceiros. Daí por que não se pune a prostituição,
a autolesão, a tentativa de suicídio, os danos a bens patrimoniais próprios, a
ofensa moral a si mesmo dentre outros.
Estaríamos dispostos a correr o
risco de aceitar a criminalização de um cidadão baseados em julgamento moral de
que suas opções individuais acarretam danos prováveis para a sociedade? Apesar de
legítima a preocupação com os efeitos do consumo de entorpecentes, uma sociedade
democrática e generosa deve respeitar, acolher e, quando for o caso, cuidar dos
cidadãos que – por inúmeras razões, todas de natureza estritamente pessoal deles
façam uso. Adotar uma ideologia proibicionista, bélica, punitiva, criminalizando
e estigmatizando os usuários parece ir na contramão da sociedade livre e
fraterna que todos nós desejamos.
ATIVIDADE
01 –
1.
O que é o Direito Penal?
2.
Segundo o texto, por que deve ser considerado inconstitucional a criminalização
do consumo de drogas?
3.
O que é um bem jurídico tutelado?
4.
Qual a justificativa ideologicamente construída para a criminalização da
conduta do usuário, segundo o texto?
5.
Ainda segundo o texto, quando o direito penal deve ser acionado?
6.
Como deve agir uma sociedade democrática e generosa em relação aos efeitos do
consumo de entorpecentes, de acordo com a juíza autora do texto?
ATIVIDADE
02 – Pesquise o significado das palavras e/ou conceitos abaixo:
1. Inconstitucional.
2.
Norma
penal.
3.
Alteridade.
4.
Transcender.
5.
Literalmente.
6.
Ideologia.
7.
Premissa.
8.
Ilação.
9.
Nexo
de causalidade.
10. Subjetividade.
11. Tipo penal.
12. Detrimento.
13. Debate.
14. Suposição.
15. Ideologia proibicionista.
16. Hegemônico.
17. Estigma.
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Respeito é palavra prática.